Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio do que não está ao pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir, sinta quem lê! [Fernando Pessoa, in "Cancioneiro]

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segunda-feira, 17 de julho de 2017

Amo-te.



Não desisti de habitar a arca azul

do antiquíssimo sossego do universo.

A minha ascendência é o sol e uma montanha verde

e a lisa ondulação do mar unânime.

Há novecentas mil nebulosas espirais

mas só o teu corpo é um arbusto que sangra

e tem lábios eléctricos e perfuma as paredes.

Aos confins tranquilos entre ilhas mar e montes

vou buscar o veludo e o ouro da nostalgia.

Deponho a minha cabeça frágil sobre as mãos

de uma mulher de onde a chuva jorra pelos poros.

Ó nascente clara e mais ardente do que o sangue,

sorvo o cálice do teu sexo de orquídea incandescente!

A minha vida é uma lenta pulsação

sob o grande vinho da sombra, sob o sono do sol.

Há bois lentos e profundos no meu corpo

de um Outono compacto e negro como um século.

Com simultâneas estrelas nas têmporas e nas mãos

a deusa da noite, sonâmbula, desliza.

Ao rumor da folhagem e da areia

escrevo o teu odor de sangue, a tua livre arquitectura.

Prisioneiro de longínquas raízes

ergo sobre a minha ferida uma torre vertical.

Vislumbro uma luz incompreensível

sobre os campos áridos das semanas.

Elevo o canto profundo do meu corpo

sob o arco das tuas pernas deslumbrantes.

Escrevo como se escrevesse com os meus pulmões

ou como se tocasse os teus joelhos planetários

ou adormecesse languidamente no teu sexo.



[António Ramos Rosa - Não desisti de habitar a arca azul]


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Vacaciones






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De Coração.

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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Sinto muito!




Coração humano é feito para o afeto, quer a gente consiga viver ou não esse chamado. 
Coração humano é feito as borboletas, imaginado para espalhar pólen de luz, alegria, bondade, amor, de incontáveis jeitos, nesse imenso jardim, com a vantagem preciosa de geralmente viver muito mais tempo do que elas. 
Coração humano, por essência, é criador de beleza. É rascunho de Deus pra gente passar a limpo. 
E quanta dor acontece, meu Deus, porque a gente não passa. Que me desculpem os apáticos: não tenho medo de sentir, eu sinto muito.

 [Ana Jácomo]

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segunda-feira, 7 de setembro de 2015

domingo, 3 de maio de 2015


Das trinta e oito mulheres que passaram pela roleta do ônibus, me apeguei a quase todas aquele lugar estratégico bem ao lado da roleta, sentado e olhando para todas e sendo olhado por algumas que mantinham o olhar por dois ou três segundos, pensando que tipo de pervertido eu era, bom, sou como qualquer um, não como qualquer pervertido só que dessa vez não era nada discreto.
Eu te vi de cima a baixo, pele clara, aliás, como você consegue se manter tão clara com esse sol todos os dias?
Você já pensou que se tivesse falado comigo eu provavelmente iria gaguejar e não saber como tirar meus olhos dos seus lábios pintados de vermelho?
Enquanto você se mantinha ali de pé com os olhos em minhas tatuagens pensando que tipo de guri eu poderia ser na sua vida ou pensando nas compras de natal que a mãe está fazendo no caos que está o Centro da cidade. Ainda prefiro pensar que imaginava que tipo de guri eu era, ali, olhando as vezes para seu rosto fingindo olhar a rua do outro lado mas com você ali a rua continuava sendo o mesmo lugar de sempre.
Olhava para seu rosto - e também para seu corpo- e para os seus malditos lábios cor de vinho, que tipo de pessoa acha que é para sair pela rua fazendo qualquer um imaginar coisas que não levam a lugar algum?
E mesmo sem se tocar que algum dia ficou na cabeça de alguém você imagina que não me lembro nem dos teus olhos cor de...
Depois de estar em minha casa entre as paredes e os olhos que tento criar na minha solidão, eu penso que poderia te ver no feriado que vem.
Mas isso nunca vai acontecer.

[João Paulo Sousa]


^^

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Faz Mal à Saúde




Não tenho ficado muito em casa não venho permanecendo em lugar algum, as vezes me encontro num desencontro entre eu e você ou você e você mesma, quase nunca estou no meio das estrelas ou entre o chão e o céu. 
Venho caminhando pelas ruas com os braços cruzados e alguns sonhos embaixo dos sapatos, seguindo rastros que não foram deixados, olhando o céu e sentindo o corpo se inundar da chuvas repentinas. 
Num quarto na parte imunda da cidade onde os corações se inundam em visões e ácidos, hoje gastei algumas horas e algumas moedas na esperança de ter paciência até a chuva transbordar o copo de café fraco e molhar as páginas com alguma cor além de nós - ou eu mesmo e um pouco de você no dia de ontem. 
Obtenho alguns fáceis desvios e rotas e placas de "pare" cartas e abusos em papel - você crê? planos planos em um espaço plano que por razões metafísicas sobem e descem. 
Ontem eu estava jovem hoje estou mais ainda, escuto as inúmeras risadas saídas da televisão do quarto ao lado e um copo com uísque ou conhaque se chocar contra a fina parede de madeira que separa meu amor do amor ao lado. 
A mulher não para de gritar e chorar e jogar coisas contra a parede, o homem com quem ela estava algumas horas atrás me pediu um cigarro e eu pedi o isqueiro. 
Não sou tão diferente do que ele é. 
Será que a mulher que acabou de cortar as mãos nos cacos da garrafa de uísque ou conhaque e sentada próximo de minha porta é tão diferente da mulher que preenche o copo que nunca transborda? 

 [João Paulo Sousa]

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Teu Céu


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quinta-feira, 30 de abril de 2015

Hora de Amanhecer





Padeci ao frio daquela noite de inverno. Como é de praxe, repeti a dose de uísque e o disco a tocar. Observava da janela quem na rua ali passava, não consegui enxergar nada, nem uma vizinha simpática sequer, estávamos eu e a janela estreita. 
O céu se mostrara nublado desde o amanhecer, e por volta da meia noite o ruido das trovoadas ameaçaram uma longa madrugada de chuva. 
O vento aumentara, e apanhei o casaco que repousara sobre o espaldar da cadeira. Serviria-me de escudo. Passou-se minutos e a chuva apareceu. Comumente a esses dias, as gotas fizeram lembrar-me você. Logo me vi chorando convulsivamente - Já que acabo sempre contendo-o - passava-se apenas de um chuvisco, porem em mim, soava mais que uma tempestade. 
O uísque havia esquentado, larguei o copo no canto da escrivaninha. A chuva tardia havia deixado o perfume de terra molhada no ar. O que eu necessitava mesmo nessa hora, era de um bom e forte cigarro, tipo Charm, para tentar retirar minhas lembranças de você. 
Recordei do gosto do filtro, a pouca fumaça exalada e a densidade deste. Alucinógeno. A poça que se formara no inicio da chuva, havia aumentado. A cada gota, uma poça nova. 
A noite ia se passando, e eu permanecia intacta, no mesmo lugar. É que há noites em que me apavora a ideia de adormecer, pois sempre me resta um pedaço do sonho em meio a realidade do dia, no qual acabo remoendo-me e criando ilusões referentes a você. 
As gotas lavavam a janela do primeiro andar, e eu me contentava em a observar enquanto as horas iam se passando. 
Queria despir-me de tudo que estava acumulado, mas as canções de Elis Regina que tocavam, não me permitiram, pois nessa existência precipitada, imprevisível de noites nada, me fiz em você. 
O despertador tocara as seis e quinze, era hora de amanhecer.

[Letícia Piazza Balbinot]

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