Hoje vou levantar-me e vou estar contente com todos os meus actos.
Vou andar, vou correr, vou gritar
vou beber água, comer terra, vou comer o ar
e vou respirar, respirar.
Vou ter consciência do meu sangue
consciência de que o meu sangue desce
sobe, entra, sai do meu coração pontual
e no momento em que me cruza o cérebro enche meus olhos de terra.
Vou andar por mim dentro em visita.
Vou considerar todos os recantos, as comissuras, os favos, os ritmos, os
sonidos, os frémitos as pausas.
Vou estar contente com o meu corpo, com os meus gestos
vou estar contente com o meu rosto, satisfeita com o desenho dos dentes,
com a curva das unhas, com a espessura dos cabelos.
Vou ver-me ao espelho e achar que está bem e estar contente.
Vou olhar os olhos e ver a profundeza prismática da íris sem temor, vou
considerar a curva das pestanas, das sobrancelhas, a linha quebrada do nariz,
da boca, as fendas móveis dos lábios, a expansão do queixo.
Vou olhar o rosto e vê-lo, vê-lo mesmo, inteiro, corpo inteiro de uma
tangência outra.
Vou olhar-me toda e vou ver a terra com os seus continentes, suas ilhas, seus mares, seus rios, montes, lagos, florestas, prados, desertos, cavernas, fossos,
precipícios.
Vou olhar-me toda e ver a terra em órbita, nas minhas órbitas o sentido
do mundo, meus olhos globos húmidos, terra azul, retina do espaço.
Vou andar, vou correr, vou gritar, vou beber água, vou comer, comer o ar
e vou respirar, respirar.
Vou ter consciência.
Vou mastigar a vida com a boca, com todas as minhas bocas, minhas línguas,
meus dentes de dentro.
Vou agarrar com todas as minhas mãos, tudo abraçar, tudo abranger, tudo
apertar, cerrar, cingir pela cintura e tudo comer, assimilar, em tudo entrar,
penetrar, tudo solver, engolir, em tudo penetrar.
Vou penetrar-me, a mim própria ter-me, ter-me.
Vou a mim própria abrir-me, meu próprio sangue dar-me, meu coração
palpar-me.
Vou a mim própria ser-me, vou respirar-me, rir-me, vou-me a mim própria
abrir-me, a mim própria despir-me, vou nadar-me, correr-me, gritar-me,
a mim própria dançar-me, com meu sangue banhar-me, vou chorar-me,
com meu amor afogar-me, com minha angústia ferir-me, com meu sono
dormir-me, com meus sonhos minha esperança erguer-me, com minha loucura
endoidecer-me, pelas minhas veias fora vou gritar-me
Vou gritar, gritar até que eu vomite esta boca de terra que me aterra,
me enterra, me afunda.
Vou gritar por ti
até que tu me oiças e possas chamar-me pelo meu nome!
[Ana Hatherly, Poesia, 1958-1978]
^^
3 comentários:
Bonito este poema .
Tenha uma boa semana
:)) Doce carinho
M.M.G.
Dá até medo tentar conhecer-se assim, cada coisa que se pode descobrir...
ℓυηα
Obrigada Maria!! Bjs!
Luninha,
nunca conseguiremos nos conhecer assim, tão intensamente... Estamos sempre em profunda transformação. Nosso pensamento de hoje não é o mesmo de ontem, e não será o mesmo de amanhã - garanto.
O mundo seria muito chato se todos fossem tão previsíveis.
Bjs!
:D
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