Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio do que não está ao pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir, sinta quem lê! [Fernando Pessoa, in "Cancioneiro]

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domingo, 23 de janeiro de 2011

O quotidiano "não"


Estamos todos bem servidos
de solidão.
De manhã a recolhemos
do saco, em lugar de pão.

Pão é claro que temos
(não sou exageradão)
mas esta imagem do saco
contendo um pequeno «não»

não figura nesta prosa
assim do pé para a mão,
pois o saco utilizado,
que pode ser o do pão,

recebe modestamente
a corriqueira fracção
desse alimento que é
tão distribuído, tão

a domicílio como
o leite ou o pão.
Mas esse leitor aí
(bem real!) já diz que não,

que nunca viu no tal saco
o tal «não».
Ao que o poeta responde,
sem maior desilusão:

- Para dizer a verdade,
eu também não...
Mas estava confiante
na sua imaginação

(ou na minha...) e que sentia
como eu a solidão
e quanto ela é objecto
da carinhosa atenção

de quem hoje nos fornece
o quotidiano «não»,
por todos os meios, desde
a fingida distracção,

até ao entre-parêntesis
de qualquer reclusão...



[Alexandre O´Neill - Poesias Completas - 1951/1981]

^^

2 comentários:

Daniel Savio disse...

Sabe o que penso que seja pior?

É quando ao meio das pessoas que amamos nos servimos de solidão.

Se cuida menina xará.

Fique com Deus, menina xará Danielle.
Um abraço.

Penélope disse...

Pois o melhor remédio para a solidão é refletir sobre tudo aquilo que a provoca e por mais que doa, eliminar...
Muitas vezes o que nos provoca solidões são as companhias...
É preciso saber jogar fora aqullo que tem causado estes vazios.
Abraços