Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio do que não está ao pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir, sinta quem lê! [Fernando Pessoa, in "Cancioneiro]

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sábado, 20 de novembro de 2010



Talvez que o que eu lhe dissera sobre o homem tivesse tido uma repercussão abrupta, tal era a distância de experiência que nos separava. Não havia em mim qualquer lucidez cínica e arrepiante, como se desejar ter um homem fosse criminosamente uma ilusão.
Não.
De modo algum.

Falara-lhe apenas, antecipando a necessária deslocação do toque. Vê-la tocar no tecido fez-me lembrar, ou pensar que nela alguma memória habitaria mas tão diáfana e subtil que, por comparação, lhe seria difícil iniciar um esboço de inventário, dar nomes aos objectos, ou objectos aos nomes falar da brevíssima ou levíssima diferença que sobressaísse, mas onde cada coisa haveria de aparecer lentamente, tacteando.

Enquanto a mão percorria o espaldar, vi formar-se lentamente uma diferença iminente, uma presença ausente que já antes lhe roçara o corpo, e se esvaíra.
Olhei-a no rosto, o meu olhar encontrou-a a roçar-se pelo vestido pensei que estivesse nua, que apenas o vestido a vestisse, ou que o vestido apenas a vestisse, acreditei que falasse um nome, que o falasse abruptamente, sabendo que é infinita a violência da mulher, como é infinita a sedução do vestido que a veste, não sabendo, nós mulheres, pela primeira vez o digo, qual é em nós a substância, a mão que roça pelo espaldar, ou o tecido branco que cobre de atributos a própria mesa.

Se o toque não for decidido,
e o medo nos invadir,
não terei palavras para lho dizer.


Como dizer-lhe que uma lâmpada se funde inesperadamente que um prato cai sem darmos por isso, quando isso é a própria queda, que uma voz desaparece repentinamente de nos falar que um afecto é, de facto, tudo (mas não de tudo quanto o prende) que teria gostado de escrever romances se o tempo não existisse que se o toque fosse indiferente apenas existiriam atributos ou, se preferes, enquanto acaricias esse espaldar só haveria vestidos, e o corpo onde o deixarias
sem ter, sequer, a noção de afecto a quem o dar, não olhes para mim com esse olhar.
Sem uma memória decidida, as coisas desconhecidas fluctuam.
Sim, imagino.
Disse-lhe, soletrando todas as letras,
o cheiro fasto que se desprende do espaldar é de um homem, odor denso, de um homemincómodo, embaraçoso, opaco.


«Quem gostarias de ver a teu lado?»


[Maria Gabriela Llansol, in O jogo da liberdade da alma]

^^

2 comentários:

AC disse...

A sua prosa é magnífica, com as palavras, cúmplices, a saberem ocupar o devido espaço e a exalarem o aroma certo.
É um prazer navegar por estas águas.

Beijo :)

Daniel Savio disse...

Memória entrelaçada ao toque é tão bom...

Fique com Deus, menina xará Danielle.
Um abraço.