Este Estio foi diferente de tudo quanto ela pudesse recordar. Não que lhe acontecessem muitas coisas dignas de evocar em pensamentos ou palavras – era antes uma sensação de mudança. Andava sempre excitada. De manhã, impaciente por pular da cama abaixo e dar começo ao dia. E à noite, detestava a ideia de ter de voltar para a cama. (...) Mas – fizesse o que fizesse – a música nunca a largava. Umas vezes trauteava entre dentes, a andar; outras escutava, calada, as melodias que lhe subiam de dentro. Havia música de toda a espécie nos seus pensamentos. Uma parte que ela tinha ouvido na telefonia, outra que trazia em mente sem que a tivesse ouvido em parte alguma. À noite, tão depressa os irmãozitos iam para a cama, ela ficava livre. Era a melhor parte do seu dia. Quando andava sozinha e no escuro aconteciam muitas coisas. Logo depois da ceia corria para fora de casa. Não podia falar a ninguém do que fazia à noite, e quando a mãe a interrogava, ela respondia com a primeira história que parecesse verosímil. Mas a mor parte das vezes, se alguém a chamava, fugia como se não ouvisse. (...) As noites estavam prodigiosas e nem tempo havia para pensar em medos. Quando se via na escuridão, era na música que ela pensava. Andando pelas ruas cantava para si própria. E era como se a cidade inteira escutasse aquela voz, sem saber que era a voz de Mick Kelly. Aprendeu muita coisa a respeito de música naquelas noites estivais de liberdade. Nos bairros ricos da cidade, onde passeava, todas as casas tinham rádio. Com as janelas abertas, podia-se ouvir da rua que era uma maravilha. Passado tempo até já conhecia quais as casas que sintonizavam para os programas que ela gostava de ouvir. Essa foi a parte mais real e autêntica de todo esse Verão, escutar a música dos rádios e ficar sozinha em trevas a meditá-la. (...) Mick sentou-se nos degraus e pousou a cabeça nos joelhos. Depois entrou no Quarto Interior. Para ela era como se houvesse dois quartos – o interior e o exterior. A escola e a família e as coisas que aconteciam todos os dias pertenciam ao quarto de fora. Mister Singer estava em ambos. Os países estrangeiros, a música e os planos e projectos pertenciam ao Quarto Interior. E as canções em que ela pensava também. E a Sinfonia. Quando ela estava sozinha no Quarto Interior voltava-lhe à memória a música que tinha ouvido durante a noite da festa. Era como uma grande flor que se abria dentro dela. Durante o dia, por vezes, ou quando acabava de acordar, pela manhã, vinha-lhe de repente à lembrança um novo trecho da Sinfonia. Então tinha que ir para o Quarto Interior e escutá-la muitas vezes para tentar juntar esse trecho aos que já tinha de memória. O Quarto Interior era um lugar inteiramente privado, só dela. Podia estar no meio duma sala de gente e ainda assim fazer de conta que estava fechada à chave por dentro.
[Carson McCullers]
[Carson McCullers]
^^
4 comentários:
Belo! Bala na agulha q se debulha. Quarto anterior ao se por em sol nascente interior...
discos jogados, uma mulher na cama, isso me lembra uma própria música minha e muita das poesias que já escrevi. e muito dos desgostos que já vivi
mas tb me lembra muito minha própria trilha sonora
As vezes é necessários se isolar do mundo exterior para curtir algo especial, mas não esqueça que muitas desta coisas especiais deve continuar no mundo exterior...
Fique com Deus, menina Danni.
Um abraço.
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