Ficamos um instante, só um instante, defronte um do outro, sem sabermos o que dizer.
Já também ao telefone, de quando em quando, nos tinha acontecido o mesmo. Ouvíamos então, descompassadas, as nossas respirações, adivinhando que elas tentavam – em que ponto do espaço? – afinar uma pela outra a respectiva cadência. Depois, em torrente, frases que nem chegávamos a terminar:
- Pareceu-me tão horrível se... Também a mim. Eu é que não... E só de pensar que... que podia acontecer... que nunca mais... Foi justamente o que pensei, mas... Nem chego a perceber como fui capaz de... Não diga isso. O importante é que...
Rimos, de repente, tão ridículos nos estávamos a sentir.
E quando é que...
Finalmente, as únicas frases completas:
Quando é que nos podemos ver?
Hoje. Pode ser hoje. Pode ser agora. Ia mesmo agora para Lisboa. Emendou: A Lisboa.
Pego-lhe nas mãos, puxo-a ligeiramente para mim. Com os sapatos que hoje traz calçados, é um tudo-nada mais alta do que eu: mas ficamos logo com os rostos encostados. A seguir, afasta-se; e murmura, olhando-me bem de frente:
Não era por isto. Não, não era por isto. Eu acho que não era por isto. Depois, cavando-se-lhe um vincozinho de dúvida entre as sobrancelhas: É como se diz? Ou para isto?
Depende. Tanto faz.
E já nos estamos a beijar. E não só com as bocas: com os dedos, também, que vão de leve modelando o volume das testas, o relevo das pálpebras, o contorno das orelhas, a espessura dos cabelos. É como se fôssemos afinal uma cega e um cego, de há muito conhecidos, de há muito separados, que ainda mal acreditam no milagre de se reencontrarem. E cegos, às cegas, mas bordões um do outro, mutuamente nos arrastamos, ou nos deixamos conduzir, desde a entrada até aí, aos pés do divã.
Então, sem se curvar, socorrendo-se apenas da pressão de cada um dos calcanhares sobre o outro, liberta-se de ambos os sapatos. Agora, sim, estamos exactamente da mesma altura.
Não era por isto. Não era só por isto. Tenho tanto medo de ser para si... De ser para si uma... Hesitou na palavra; depois, arriscou-a, pronunciando-lhe o p: Uma decepção.
Os olhos, imensos, exprimiam simultaneamente um terror infantil, uma adulta curiosidade.
Vai ter que... que me aprender tudo. Corrigiu: Que me ensinar tudo.
Dentro de instantes estávamos nus. Não tinha sido necessária grande intervenção da minha parte para que tombassem os primeiros obstáculos, para que voassem os últimos véus.
[David Mourão-Ferreira]
^^
Já também ao telefone, de quando em quando, nos tinha acontecido o mesmo. Ouvíamos então, descompassadas, as nossas respirações, adivinhando que elas tentavam – em que ponto do espaço? – afinar uma pela outra a respectiva cadência. Depois, em torrente, frases que nem chegávamos a terminar:
- Pareceu-me tão horrível se... Também a mim. Eu é que não... E só de pensar que... que podia acontecer... que nunca mais... Foi justamente o que pensei, mas... Nem chego a perceber como fui capaz de... Não diga isso. O importante é que...
Rimos, de repente, tão ridículos nos estávamos a sentir.
E quando é que...
Finalmente, as únicas frases completas:
Quando é que nos podemos ver?
Hoje. Pode ser hoje. Pode ser agora. Ia mesmo agora para Lisboa. Emendou: A Lisboa.
Pego-lhe nas mãos, puxo-a ligeiramente para mim. Com os sapatos que hoje traz calçados, é um tudo-nada mais alta do que eu: mas ficamos logo com os rostos encostados. A seguir, afasta-se; e murmura, olhando-me bem de frente:
Não era por isto. Não, não era por isto. Eu acho que não era por isto. Depois, cavando-se-lhe um vincozinho de dúvida entre as sobrancelhas: É como se diz? Ou para isto?
Depende. Tanto faz.
E já nos estamos a beijar. E não só com as bocas: com os dedos, também, que vão de leve modelando o volume das testas, o relevo das pálpebras, o contorno das orelhas, a espessura dos cabelos. É como se fôssemos afinal uma cega e um cego, de há muito conhecidos, de há muito separados, que ainda mal acreditam no milagre de se reencontrarem. E cegos, às cegas, mas bordões um do outro, mutuamente nos arrastamos, ou nos deixamos conduzir, desde a entrada até aí, aos pés do divã.
Então, sem se curvar, socorrendo-se apenas da pressão de cada um dos calcanhares sobre o outro, liberta-se de ambos os sapatos. Agora, sim, estamos exactamente da mesma altura.
Não era por isto. Não era só por isto. Tenho tanto medo de ser para si... De ser para si uma... Hesitou na palavra; depois, arriscou-a, pronunciando-lhe o p: Uma decepção.
Os olhos, imensos, exprimiam simultaneamente um terror infantil, uma adulta curiosidade.
Vai ter que... que me aprender tudo. Corrigiu: Que me ensinar tudo.
Dentro de instantes estávamos nus. Não tinha sido necessária grande intervenção da minha parte para que tombassem os primeiros obstáculos, para que voassem os últimos véus.
[David Mourão-Ferreira]
^^
5 comentários:
Fico me perguntando pq nos questionamos tanto e desperdiçamos palavras, quando o que mais queremos e nos entregar?
carinho
Denise
Que jeito lindo de contar as expectativas de um encontro, Danni.
Me fez lembrar dessa, do Lulu :
♪ " Nós somos medo e desejo
Somos feitos de silêncio e som
Tem certas coisas
Que eu não sei dizer" ♫
^^
Dois beijos de terça.
ℓυηα
Será que existirá algo melhor do que expecatitivas de um encontro?
É a mesma coisa que preparativos de uma viagem. Muitas vezes o antes é melhor do que o durante e depois.
Beijos
Denise, vc disse tudo!
O problema é que eu travo. Não sei como, mas travo.
Luninha e Blue, tem caso que a expectativa é infinita... parece que nunca irá se concretizar. Isso é tão angustiante! rsrsrs...
Bjs!
=)
foi aqui..mas deixa pr'á lá...
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