Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio do que não está ao pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir, sinta quem lê! [Fernando Pessoa, in "Cancioneiro]

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sexta-feira, 3 de julho de 2009

Rifa-se um coração...



"Rifa-se um coração quase novo. Um coração idealista. Um coração à moda antiga. Um covarde, moleque que insiste em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração que na realidade está um pouco usado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos e cultivar ilusões. Um pouco inconsequente, que nunca desiste de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração que acha que Tim Maia estava certo quando escreveu... "Não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu espero...
Um idealista!!! Um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende, que não endurece e mantém sempre a esperança de ser feliz, sendo simples e natural.
Um coração insensato que comanda o racional sendo louco o suficiente para se apaixonar. Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra, que briga que se expõe. Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes, revê suas posições arrependido de palavras e gestos. Esse coração tantas vezes incompreendido, tantas vezes provocado, tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional que abre sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto. Um coração para ser alugado ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes. Um órgão abestado, indicado apenas para quem quer viver intensamente e contra-indicado para os que apenas pretendem passar pela vida matando o tempo, defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente que se mostra sem armaduras e deixa louco seu usuário. Um coração que quando parar de bater ouvirá o seu usuário dizer pra São Pedro na hora da prestação de contas: "O Senhor pode conferir, eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento. Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi este louco coração de criança que insiste em não endurecer e se recusa a envelhecer".
Rifa-se um coração ou mesmo troca-se por outro que tenha um pouco mais de juízo. Um órgão mais fiel ao seu usuário. Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga. Um coração que não seja tão inconsequente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda não foi adotado, provavelmente, por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais, por não querer perder o estilo. Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. Um simples coração humano. Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado. Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado, faz questão de não se modernizar, mas vez por outra, constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus segredos e a ter a petulância de se aventurar como poeta"......

[Clarice Lispector]


^^

2 comentários:

meus instantes e momentos disse...

Muito bom teu blog. Gostei daqui.
lindissimas fotos. parabens, muito bom.
Maurizio

Anônimo disse...

Danninha,


a foto é um chute no saco!
O poema é lindo!
Sua lembrança,
perfeita!!

Mas ainda quero ter domínio total e absoluto do meu coração.

BjOOO