Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio do que não está ao pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir, sinta quem lê! [Fernando Pessoa, in "Cancioneiro]

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segunda-feira, 17 de junho de 2013

Cálice




Composta por Chico Buarque e Gilberto Gil, a música “Cálice” é mediada por metáforas e faz um contraste com a Bíblia. A sonoridade tem grande importância e denuncia a ditadura militar no Brasil, o modo como as pessoas tinham que ficar caladas. O refrão e primeira estrofe “Pai, afasta de mim esse cálice” foram escritos em uma Sexta-feira Santa. A música foi composta para o show Phono 73, realizado em maio de 1973. No dia do show, souberam que a música foi proibida e Chico decidiu cantá-la sem letra. Porém, a gravadora desliga os microfones e ele acaba desistindo. Em 1978, a canção foi liberada e incluída no LP Chico Buarque, do mesmo ano.

- Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue -

A palavra “cálice” é escolhida propositalmente por causa de sua sonoridade, que nos lembra, além do significado do substantivo, a forma verbal “cale-se”. Este verso é um pedido ao Pai (Deus), para afastar o silêncio causado pela ditadura. “Cálice” é um objeto que pode ter algo em seu interior e, no caso, o que há dentro desse silêncio ditatorial é o preço da vida de pessoas e o sangue das vítimas das repressões e das torturas. É importante ressaltar que toda a música faz uma analogia entre a Paixão de Cristo e a situação das vítimas da Ditadura.

- Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor e engolir a labuta?
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta -

A metáfora remete à dificuldade de “beber dessa bebida amarga”, ou seja, à dificuldade de viver nessa situação, presenciar toda a repressão e não poder fazer nada. O “engolir a labuta”, significa ter que aceitar uma condição de trabalho desumana, como se fosse algo normal. Representa o ideário de esquerda, o desejo de mudança estancado no peito e, por conta da censura, calado na boca. Já o silêncio na cidade seria o silêncio causado pela censura, que, como não se podia falar nada contra o governo, parecia até que não existia opiniões contrárias, pessoas contrárias ao regime militar.

- De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta -

O sentimento de desgosto em ser filho da santa (continuando na temática da religião), que é a “pátria mãe”. Os autores dão a entender, pela rima subentendida, que prefeririam ser filho de uma prostituta (“puta”), representada pelo “da outra”, do que ser filho da “santa” com esse regime político. Buscam uma realidade que fosse “menos morta”, na qual as pessoas não tivessem extintos os seus direitos. Já o último verso, seria uma “denúncia” da mentira do “milagre econômico”, que era uma farsa, uma vez que as pessoas não estavam melhorando de vida, mas era isso era apregoado como verdade e o povo era forçado a acreditar.

- Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado -

Essa estrofe mostra o descontentamento em acordar sem poder expressar-se, principalmente sabendo que ocorriam muitas torturas à noite. O eu-lírico se sente tão preso e atordoado, que chega a cogitar deixar de falar o que pensa por meios pacíficos e partir para a luta armada, pois, assim, poderia ser ouvido de forma mais contundente.

- Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, prá a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa -

Aqui, o eu-lírico faz uma denúncia dos métodos utilizados para silenciar alguém por meios de torturas, as quais levavam as pessoas a perderem seus sentidos, mas, mesmo assim, ele permanece atento, esperando as “boas novas” que viriam. Entretanto, não há certeza se essas “boas novas” virão, pois podem ser “más novas”, como o surgimento de mais alguma imposição da Ditadura, metaforizada na imagem do “monstro da lagoa”.

- De muito gorda a porca já não anda (Cálice!)
De muito usada a faca já não corta - 

O porco é um animal pesado, pouco ágil. “A porca”, por sua vez, simboliza a ditadura militar, que, de tão corrupta e falha, não ia pra frente. Já a faca muito usada mostra o desgaste do sistema vigente na época, que não era eficaz.

- Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!)
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo -

A porta, biblicamente, representa um novo tempo e o primeiro verso mostra a dificuldade em mudar-se a situação e começar uma nova. A palavra está pronta para ser dita, mas não pode. Também faz uma alusão aos regimes ditatoriais do mundo inteiro, calando seu povo e deixando-os com ideologias presas no peito, proibidas de serem reivindicadas.

- De que adianta ter boa vontade?
Mesmo calado o peito resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade -

O eu-lírico se pergunta se adianta ter uma boa vontade, se o mundo está de cabeça pra baixo. Faz referência à frase da Bíblia: “paz na terra aos homens de boa vontade” e mostra que, mesmo sem poder falar, as pessoas não deixam de pensar.

- Talvez o mundo não seja pequeno (Cale-se!)
Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!) -

Os autores, agora, referem-se à volta da esperança de uma possível mudança: o fim da repressão.

- Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!)
Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cale-se!)
Quero perder de vez tua cabeça (Cale-se!)
Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)
Quero cheirar fumaça de óleo diese (Cale-se!)
Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!) -

A última parte mostra o desejo do eu-lírico de fazer suas próprias regras, de cuidar da sua vida. Mostra que a repressão não deveria opinar e julgar alguém que não possui as mesmas “crenças” que ela. Para um indivíduo ser dono de suas próprias ideias, ele deve pensar de acordo com sua ética e razão, e não de acordo com dogmas impostos. E, no último verso, os compositores, para denunciar a situação brasileira, expressam-se através da imagem de um dos meios de torturas usados (queimar óleo diesel em uma sala para deixar os torturados embriagados). Por fim, mostram que mesmo com toda essa situação difícil, os subjugados tinham seus truques para “fugir” da ditadura e reagir, como por exemplo, fingir um desmaio durante essa seção de tortura, para não serem molestados. Outro aspecto que vale lembrar é o fato da palavra "cálice" ser dita ao final de cada verso, como se o eu-lírico quisesse falar e a repressão dissesse para ele se calar.


[Cálice - Chico Buarque e Gilberto Gil]
[Voz: Pitty]



^^

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