Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio do que não está ao pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir, sinta quem lê! [Fernando Pessoa, in "Cancioneiro]

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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Talvez...


No ar da sala, o fumo dos cigarros misturava-se com a música que saía das colunas do gira-discos. Todas as pessoas estavam juntas em conversas. Para lá da idade que tinham, eram demasiado jovens. Seguravam copos. Sorriam e entusiasmavam-se ou concentravam o olhar e ouviam. Na rua, talvez chovesse. Os vidros altos da porta da varanda não mostravam mais do que a noite. Ele e ela eram indistintos de todos os outros. As imagens dos seus rostos e dos seus corpos eram naturais entre os casacos aos quadrados, as camisas de colarinhos pontiagudos, as calças de fazenda. Estavam sentados no sofá, lado a lado, e tinham terminado de conversar no momento em que as palavras dele lentamente se dissolveram no fumo dos cigarros e na música que saía das colunas do gira-discos, no momento em que ela não soube responder a uma conclusão banal. Para lá das palavras e da memória das palavras, continuou o significado daquilo que realmente disseram enquanto conversavam: os riscos brandos do sorriso dele à volta dos cantos da boca, a atenção solícita dos olhos dela, o tronco dele a aproximar-se a cada frase, os dedos dela a acertarem os cabelos por trás das orelhas, os joelhos dele a tocarem as pernas dela, os lábios dela a articularem cada palavra como se estivessem pousados sobre os lábios dele.

Ela tinha talvez 25 ou 26 ou 27 anos. Ele tinha talvez a mesma idade. Ela tinha os cabelos lisos e escorridos sobre as costas. A pele do seu rosto era serena tal como se estivesse calma e desejasse ainda mais tranquilidade. Ele tinha os primeiros dias de uma barba que crescia e que já se podia imaginar. Os seus olhos eram o início de um caminho verde como uma floresta. De cada vez que um deles levava o copo aos lábios, o outro imitava-o e havia um momento em que pensavam na mesma coisa. Tinham sabido o nome um do outro há pouco mais de uma hora. Tinham começado a conversar porque as únicas pessoas que conheciam os tinham deixado juntos e tinham ido conversar com outros. Assim que foram apresentados, depois de sorrisos, simpatia, ele escolheu palavras para lhe perguntar o que fazia.

Ela respondeu que trabalhava numa produtora de cinema. Não lhe disse que passava os dias numa sala vazia, sentada a uma secretária, frente a um telefone que nunca tocava, a preocupar-se com a mãe que estava sozinha e deprimida em casa, com as facas todas alinhadas na gaveta dos talheres e com as promessas de matar-se ainda vivas na memória e com os pulsos ainda ligados pela última tentativa: a ambulância a serpentear pelas ruas, e ela com os dedos pousados sobre a testa da mãe, e a mãe com as pálpebras sem força pousadas sobre os olhos. Não lhe disse que chegava de manhã cedo, deixava a mala em cima da secretária e, depois de abrir as janelas, ficava imóvel e perdia todas as palavras dentro dos pensamentos. A claridade tocava os cartazes de filmes em que não tinha trabalhado, mas que tinha escolhido para afixar nas paredes. No fim da manhã, chegava o dono da produtora que, não esperando resposta, abrindo cartas com contas da luz e da água, perguntava se alguém tinha telefonado. Tinha sido ele que, na cama de uma pensão, durante um cigarro, a tinha convidado para trabalhar ali, quando ela ainda estava apaixonada e ainda acreditava que um dia ele iria deixar a mulher e, pedindo-lhe opiniões, iria realizar filmes lindos como os seus sonhos. Não lhe disse que, durante a hora de almoço, uma ou duas ou três vezes por semana, faziam sexo em cima da secretária, ou encostados à secretária, ou no chão em cima de um tapete. Não lhe disse que ele saía no início da tarde e que, só então, ela tirava a caixa de plástico da mala, os talheres embrulhados num guardanapo de pano e almoçava.

Ele falou longamente sobre cinema. Disse-lhe que ia muito ao cinema quando vivia na terra onde tinha nascido e de onde tinha saído para estudar Teatro no Conservatório. Não lhe disse que o homem do cinema o deixava sempre assistir de graça desde que ficasse durante todo o filme sentado no seu colo. Não lhe disse que, depois de cada filme, todos os rapazes que andavam com ele na escola, e todos os rapazes mais velhos, lhe chamavam nomes e lhe batiam. Não lhe disse que os homens ficavam encostados às grades da casa ao lado do café a verem e a rirem-se. No recreio da escola, batiam-lhe também. No caminho para a escola, batiam-lhe, tiravam-lhe a mala e espalhavam pelo chão os livros e os cadernos com páginas sujas de lama. Depois, já era mais velho, e os colegas continuavam a bater-lhe e desviava o olhar, ficava parado quando os rapazes mais novos lhe vinham dar pontapés nas pernas e murros no centro das costas. Não lhe disse que, nos três anos de Conservatório, não tinha conseguido passar a nenhuma disciplina porque tinha vergonha da sua própria voz, porque tropeçava na sua própria voz em cada palavra que tinha de dizer. À noite, trabalhava num bar onde via actores e onde falava com alguns deles, onde lhes oferecia copos de plástico com vodka e sumo de laranja, e onde se ria exageradamente de cada vez que algum dizia uma piada. Depois, voltava para o seu quarto, adormecia a pensar e, pouco depois, quando amanhecia, não tinha forças para se levantar. A viúva que lhe arrendava o quarto batia à porta e perguntava-lhe se não ia às aulas, dizia-lhe que arrendava quartos a estudantes e não a vagabundos. Então, levantava-se, vestia-se e caminhava sozinho pelas ruas da baixa. Olhava para as montras e sentava-se à frente de uma chávena vazia de café nas esplanadas onde sabia que não chegariam empregados a perguntar-lhe o que queria tomar.

Ela disse-lhe que uma produtora de cinema precisa sempre de actores. Ele disse-lhe que um actor precisa sempre de produtoras de cinema. Riram-se. E disseram muitas coisas. E não disseram muitas coisas. No ar da sala, a música do gira-discos era indistinta do fumo dos cigarros e bebidas no colo. Havia algum tempo que grupos de pessoas tinham escolhido momentos para se despedirem com sorrisos e saírem.(...)

[José Luís Peixoto]


^^

9 comentários:

Daniel Savio disse...

Imagino que não precisasem falar muita coisas, mas sim que haviam se achado...

Fique com Deus, menina xará Danni.
Um abraço.

Marcelo Mayer disse...

uma lolita de 40 anos

Déia disse...

E então ele a acompanhou até em casa, o assunto, incrivelmente não findava! E hj em dia é difícil achar alguem com tantas afinidades...

Dizem que estão juntos até hj... e ...

rsrsrs amei!

Bj

APC disse...

Como disse o Marcelo tem algo de Nabukov..
Beijo

Luna Sanchez disse...

Conexão total. Isso tem preço?

=)

Beijo, flor.

ℓυηα

Gabriela disse...

em quantos lugares por ai perdido , esta aquele que sofre de aflições parecidas com a minhas , mas não diz .
Pra que viver de amargura se ela quer nos consumir.Que tal sonhar e compartilhar o sonho com aquele , ou aquela da AFINIDADE afiadaa

AMeii o textoo

Beijos

*Mundo Particular* disse...

Olá flor..obrigada por visitar meu cantinho, me encantei com o seu também...
Bj!! boa noite!!
Apareça quando puder.
Te convido desde já a conhecer meu outro cantinho que adoro, espero que goste também.

(http://meumundonovo1.blogspot.com)

Ivan disse...

Oi lindinha,

Obrigado pela visita lá no blog.

Voce ja conhece o amordepapelao?

Beijos.

Ivan.

Daniele.. disse...

Eu gostei bem alegre..

Humor é tudo!
Beijo Dannyzinha..☺