Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio do que não está ao pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir, sinta quem lê! [Fernando Pessoa, in "Cancioneiro]

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segunda-feira, 19 de outubro de 2009


O perigo dos espelhos é exporem-se os ossos.
A luz reflui através das omoplatas, distribui-se
pelos flancos, concentra-se nos pés.
De alto a baixo somos vivas candeias acesas.
Entramos na obscuridade com o fascínio
de um dom próprio.
Não possuímos um deus, mas duas mãos lisas
e uma boca de vidro – e uma voz
que vai morrer.

Fazer estalar a amnésia, pouco a pouco,
ou de um só golpe. Ninguém acorda
senão numa sala de pânico.
Levas o dedo à ferida: uma fechadura.
E, rodando o dedo, há por baixo
uma tulipa aberta,
decifrada.
Podias amar concretamente esta dolorosa,
solitária investigação dos interiores,
as malhas soltas da luz.

Porque o mundo é um contínuo acto de costura.
Rompemos com o mistério apenas para
que se teça um mais alto e apaixonante enigma.
Tudo o que nos fulmina, cresce devagar.
Entende-se que seja assim, trôpego, o existir?
Não, não temos uma súbita iluminação,
mas recantos e recantos, penumbras
– e uma voz exausta que vai
morrer.

[Vasco Gato]
^^

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