Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio do que não está ao pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir, sinta quem lê! [Fernando Pessoa, in "Cancioneiro]

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sábado, 19 de setembro de 2009

* Bicicletas em Setembro


Sente que fora abandonada por todos, e coisa alguma se harmonizava com o que entendia ser a sua alma. Permanecia assim: dias esquecidos e indiferentes, cavando fundo, as sombras mais frias; tombavam as primeiras folhas amareladas, nasciam as primeiras folhas verdes. Morte e recomeço. Nenhum laço a prendia a ternas lembranças, porque as não tinha, a não ser a emoção que tomava conta dela quando recordava os rapazes e as raparigas. Abandonada por todos, unida ao seu pessoal silêncio, era tocada por um sentimento de piedade, muito próximo do religioso. Parecia-lhe uma maldição tudo por que vivera, e certas zonas calcinadas do seu passado emergiam, agora, nítidas e dolorosas. Não quero acabar assim: encurralada e assustada. A casa vazia ressumava persistente odor a velhice. A velhice tem um odor húmido que se cola às coisas e, viscoso, parece escorrer pela pele. Tapadas, uma a uma, as janelas abertas pelos sonhos, pelas paixões, pelos desejos, pelas fraquezas e pelas intuições. A subida do desespero extremo, instantes sem conteúdo e, simultaneamente, portadores de secretas significações: o torpor de uma tarde suspensa e a invasão da alma pela morte. Varavam os dias, entretecidos uns nos outros. Sabe-se: gostamos das estações do ano consoante as estações da nossa vida. Apreciamos o Outono quando começamos a ficar velhos. A Primavera dói-nos porque nos dói os ossos, as carnes do peito e das pernas. Onde menos se supõe, lá está a dor. A felicidade não existe; há, apenas, instantes felizes. Também se diz que não se pode ter tudo. Mas porque razão não se pode ter tudo? Que nos impede de ter tudo? Quando fiquei só desorientei-me um pouco. Por vezes, era assaltada pelo receio de gritar no meio da noite. Pela primeira vez pressenti-me incapaz de dominar os meus medos e de remediar os meus impulsos. Vagueava pela casa, permanecia horas a reler jornais antigos, o silêncio era denso, o cheiro da solidão horroroso, os pensamentos afluíam e corriam à desfilada num tropel doentio. Assustava-me. Pensava na absoluta necessidade de coisas sem importância, mas tudo me conduzia às perplexidades do desalento. O poder das emoções começava a esclarecer as causas pelas quais eu fugira de tudo e ali me instalara. Todas as cidades, afinal, dispõem de um sítio onde as pessoas podem recolher-se, e onde o tempo pára quando rimos. Nunca quis muitas coisas. O que forma a minha e a tua vida foi a atracção mútua, embora nada nos aproximasse. Nem em dúvidas nem em certezas éramos semelhantes. (...)


Hoje, admito que esse desprezo talvez contivesse algo de receio e de atracção. Como a morte: atrai-nos enquanto a repelimos. Detestavas os meus pequenos prazeres, fizeste-me amargar muitos deles com implacável zombaria: livros, músicas, filmes. Não merece a pena nomear as nossas divergências. Provínhamos do mesmo sítio, mas não pertencíamos aos mesmos sonhos.

[Baptista-Bastos]

^^

Um comentário:

Luna Sanchez disse...

As palavras nos fazem sentir as emoções, ver as cenas, perceber a angústia...até o frio que vinha, não necessariamente de fora, senti ao ler estas.

Beijos, Danni.

ℓυηα