Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio do que não está ao pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir, sinta quem lê! [Fernando Pessoa, in "Cancioneiro]

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sexta-feira, 24 de julho de 2009

Horizonte

Havia uma menina sentada
junto a uma janela

Ela vestia uma velha camisa de dormir
larga
e tinha cabelos castanhos lisos
longos

Tinha uma caixa de plástico vermelha
no colo
e olhava o horizonte cinzento
ao longe

Talvez vivesse numa ilha
e talvez brincasse junto ao mar
nas tardes de verão

Ela estava sentada
não sei bem se num banquinho de madeira
ou se num rochedo do tamanho do mundo

Às vezes
os seus olhos pousavam suavemente
na caixa vermelha
e os seus pequenos dedos
imprimiam na superfície do plástico
antigas histórias
de gente que não mais voltara do mar

A casa era do tamanho
de uma janela que dá para o mundo

E a madeira cheirava a madeira
e alguma coisa nela me dizia
que outrora fora barcos

Nenhum entardecer
se assemelhava ao que habitava
aquela janela

E a menina sabia-o
não sei bem como

Os seus olhos cinzentos
olhavam o horizonte
com a paciência
de quem olha os horizontes

E por vezes
esticava o pescoço
para ver mais longe

Ela descobrira sozinha
o significado da palavra longe

O tempo era
verdadeiramente
algo indistinto

E os cabelos
acariciados pela tempestade
gritavam
aos olhos mais atentos
a palavra eternidade

Sempre que abria as mãos
caíam ao chão
punhados de terra
ainda misturada com raízes

E no seu colo pousava
aquela caixa vermelha de plástico liso
como uma mancha de sangue
no branco sujo
da camisa de dormir

De vez em quando
cantava
melodias tristes
que ela ouvira
certamente
da boca dos mortos
que escolheram aquele lugar
para olhar o horizonte

Um dia
alguém vindo do mar
dissera-lhe ao ouvido
a palavra infinito
e ela rira

Ria sempre
que alguém dizia
infinito

Desde então
passava noites inteiras
na sua janela

Nenhuma palavra
se lhe ouvia
mas ria-se às vezes
como se riem as crianças

Há quem diga
que lhe morrera o mundo
e que perdera o tempo
numa noite de tempestade

Outros dizem que aprendeu a falar com os mortos
e que passeia no fundo dos mares

Que chama pelo respectivo nome cada estrela
e que tem uma música para cada pôr-do-sol

Que guarda na pequena caixa de plástico
todos os sonhos dos homens

Eu sei que ela tem uma janela nos olhos

Imagino que corra na praia
e que caminhe sem dificuldades
na estrada do horizonte

Julgo que é sozinha desde sempre
e que não gosta de andar com guarda-chuva

Provavelmente,
conhece mesmo o fundo dos mares

E nem sequer me custa acreditar que
se pudesse ver o que esconde
aquela caixa de plástico
ela me pareceria vazia

[José Rui Teixeira]


^^

2 comentários:

Blue disse...

Procuramos no horizonte nossos tempos perdidos?

Beijos

Luna Sanchez disse...

Imaginei a cena, acompanhei cada descrição, senti até o vento nos cabelos, quase pude tocar a caixa...

Lindo, Danni.

Triste, daqueles que deixam a alma no vácuo. E lindo demais.

Beijo,

ℓυηα